Ainda me lembro do dia em que o vi sentado com um boné na cabeça baixa que repousava sobre a mesa, em posição de contrição, enquanto eu caminhava rumo à secretaria para efetuar a matrícula. Era o começo do curso e, na verdade, nem fui tão seu amigo assim, mas ele tinha uma ousadia que irradiava e convicção de fazer inveja. Não poucas vezes nos divertíamos com conversas inusitadas que fantasiavam um pouco da liberdade que não existe na vida privada. Mas, não foi à toa que me lembrei dele. Um amigo em comum me trouxe a notícia de mais uma “baixa”. Não da pessoa em si, mas de uma relação que parecia inabalável. Pai de dois filhos, os quais ainda não tive a felicidade de conhecer, hoje se enxerga em uma relação insustentável não rompida somente pelos laços que não os unem mais, os filhos. E, confesso que me assustei. Não por ser tão nobre, mas por puro egoísmo mesmo. Porque, enquanto para ele sobrava um sentimento de tristeza, o susto me via no espelho. É para dentro de mim que olhava, e para a minha relação que a consciência apontava. Cercado pela fragilidade de relacionamentos, onde para um amigo, a separação de 20 anos de relação, ditos atribulados, o faz bem (e isso me assusta), e para outro que se diz não preparado para viver uma vida em que é preciso dividir mais um pouco (porém isso parece soar mais como um trauma e não com o fato da preparação em si), fiquei pensando em o que me garante que isso não aconteça comigo, e me fiz valer do pensamento de que viver em um relacionamento é viver perigosamente. É sempre um risco.
Primeiro, porque pouco nos conhecemos a nós mesmos. Todos crescemos construindo uma identidade falsa a respeito daquilo que somos. Existe uma loucura coletiva de identidades de “mentirinha” e de infelicidades crônicas, a começar pela pressão dos sonhos que os pais têm dos filhos, sem contar que é a mídia que te faz acreditar no que é bom e necessário, e também a sociedade, que parece seguir um “espírito de época” que nos diz a respeito do que é bom ou mau para a nossa vida. Acho que daí é que adquirimos máscaras. Nos tornamos, talvez, algo que deveríamos ser, mas tampouco aquilo que de fato somos. Mas, também ninguém se atreve a tirar as máscaras. Na verdade, é muito mais fácil arranjar outras. Daí se justifica a necessidade das lipos, plásticas, silicones e gente de plástico exibindo corpo de mentira como se fosse a mais bela verdade. Um filósofo já disse “conhece-te a ti mesmo”. Acho que foi mais ou menos isso que Deus perguntou para Adão quando disse: “Onde estás?”. Ali Deus não parecia procurar onde o ingênuo Adão se escondera, mas sim onde ele existia em seu próprio ser. Mais ou menos como “Onde está o seu eu?” “Quem é você atrás da mascara?” Muito mais que uma questão ontológica, uma questão existencial. Talvez um passo para uma relação transparente seja encontrar seu próprio eu. Pode ser que descobrindo o seu próprio ser (além de se decepcionar um pouco, ou muito) você consiga enxergar àquilo que o outro é, e não somente a projeção da máscara que ele usa ou que você gostaria que ele usasse.
Segundo, porque não há garantias. Não é de hoje que se ouve dizer que não há garantias para o amor. Mas, pior do que querer garantias é requerer desse amor o seu “tal” direito de ser feliz. Torna-se insustentável uma relação que tenha o dever de funcionar corretamente para satisfazer-me e deixar-me realizado como quesito básico para que ela continue a existir. Insustentável porque não é preciso ser suficientemente inteligente para perceber que nesse mundo nada funciona de maneira adequada o tempo todo. Uma hora essa coisa, seja ela o que for, dá defeito. É só parar para pensar em você mesmo, quantos turbilhões de pensamentos te atingem num só dia que te fazem mudar de opinião e vontade a cada momento? Mas, a tal relação tem que funcionar corretamente, para que ela não corra o risco de ser trocada por algo mais novo, mais feliz e ousado, e que pareça funcionar pra sempre bem. Mera utopia do que é se relacionar... Quando se vive a dois o egoísmo não cabe porque favorece sempre um. Pessoas que não sabem perder, ceder, abrir mão, não estão maduras para receber os benefícios de um relacionamento. Não existe uma ética retributiva no amor. Não há dívidas que podem ser pagas, nem garantia para a devolução do que se entrega. Existe mutualidade, reciprocidade, cuidado, dor, revolta, erro, perdão, alegria, tudo em pequenas doses, ou bem misturado multiplicado por 70x7 pronto pra beber numa golada só... Não há garantias e também há de se descartar previsões...
Terceiro, porque não sabemos dizer não. Acho que precisamos aprender a dizer não. Não à tudo aquilo que você não seja capaz de sustentar (em todos os sentidos da palavra), seja o próprio relacionamento, ou simplesmente àquilo que o ameace. “Não” para um relacionamento que está acontecendo e você não está preparado. Ou, “não” para a presença de alguém mais, quando já se está dentro de um. Talvez o grande salvador de um relacionamento seja, além do perdão (por diversas vezes), um simples não na hora “errada”.
Enfim, me preocupo comigo talvez porque tento me conhecer, e ao olhar para relacionamentos seja daquele cara de boné do primeiro ano, ou de amigos (que sem querer analiso), e até mesmo o meu, enxergo sombras quando se passa o deserto, e sei que é ali que corro o risco de ser banal, como já o fui. É por isso que preciso me lembrar sempre, para que essas lembranças, que por vezes tratadas como insignificantes, tragam à memória a sensibilidade especial trazida por meu relacionamento, que além da certeza da amizade me confirma que existe sim, amor legítimo, não aquele que me traz uma satisfação louca de momento e que acompanha uma falsa promessa de uma utópica felicidade (só pelo fato de que essa não se sustenta em si mesmo), mas àquele cujo alguns já falaram e que ecoou novamente hoje em meu coração dizendo que ele “tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta (…)”
Um comentário:
Me explica? É menos dificil quando vc fala.
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